Ao embarcar, sentimos que esta aventura estava finalmente a começar. Maputo foi uma passagem breve, que não teve tempo de se tornar história, tendo-se ficado pela imagem. Somente no dia em que aterramos em Quelimane o sentimento africano nos invade, e todo o falado, contado, tomou forma num real. Conhecemos a
A Paula ficou em Quelimane junto do primeiro grupo de voluntários. Os outros, nos, seguimos viagem de machibombo ate Mocuba, ocupando 5 dos 150 lugares improvisados sobre os supostos 70. Partilhemos o sentimento de ter bilhete ja comprado e ainda assim correr o risco de não conseguir atravessar uma imensidão de pessoas a porta da viatura, ja completamente ocupada por clandestinos sonolentos que se tinham abrigado do frio da madrugada, na espera da hora de saída. A partida aconteceu varias horas após o previsto, longas horas ocidentais, alimentadas por uma animação real e arriscada. Um entrar incessante de objectos, de pessoas, de galinhas, de mosquitos, com uma irritação crescente desta multidão heterogénea, ja saturada pelo ar usado e mal cheiroso, dentro do machibombo. Ao arrancar, o contraste entre a partida tão desejada e a preocupação da mecânica barulhenta de um autocarro tão baixo pelo peso. Esperávamos uma paragem que nenhum de nos conhecia, Mocuba.
Chegados a um local que nos diziam ser Mocuba, nos, Alexandra e Pedro, pedíamos numa gritaria para o motorista parar, entre gente que acudia a nossa situação e pessoas que, indiferentes, se mantinham obstáculo ao alcance da porta de saída. Uns escassos dez metros percorridos a nado entre pessoas. Um condutor irritado, um cobrador bruto, e uma indisposição maldosa para nos abrir a bagageira e retirar as malas. Lá fora, dezenas de vendedores ambulantes cercavam-nos, enquanto a nossa atenção estava focada nas malas que acabamos por conseguir recuperar. Um momento agitado, curto em tempo mas longo em sensações, ate que do muito passamos ao nada: olhamos em volta e em dez segundos encontramo-nos sozinhos com as malas, sem direcção a seguir, apenas com a tarefa de encontrar um chapa que nos levasse ao destino final: Milange. Rapidamente sentimos necessidade de sair daquele nada. Na estrada de terra batida, as malas demoravam-nos de tal modo que a Alexandra optou por carregar a sua a cabeça. Andamos e andamos, as curvas. Éramos mirados como tolos. Finalmente a estação apareceu-nos.
Ao início de tarde, encontramos o chapa para Milange, uma velha carrinha de caixa aberta, com dezenas de pessoas na parte traseira, amontoadas entre os sacos, as malas e os lotes de cereais. Entre elas, varias crianças, dois homens bêbedos, uma idosa. Ninguém conseguia mover-se, não havia espaço para todos se sentarem, as abas laterais foram amarradas com cordas para não abrirem, dois homens levaram as suas próprias cadeiras de madeira e varias pessoas tinham bacias de agua repleta de areia que bebiam para atenuar a forca do sol. Apenas contando a primeira meia hora de viagem, o combustível acabou e o motor avariou, tendo o condutor sido forcado a procurar uma oficina e um vendedor ambulante de gasóleo. O ambiente atrás era de indescritível desconforto, e todos iam revoltados com as desumanas condições de viagem, reclamando em tom agressivo com o condutor e o ajudante. Quando a policia fez paragem, todos começaram a gritar que daquela forma não iriam aguentar ate Milange, e o condutor teve ir ao posto policial. Quando regressou, visivelmente irritado com a atitude dos passageiros, entre ameaças e insultos, nenhum dos passageiros homens se disponibilizou a empurrar o chapa para seguirmos viagem, ate que a Alexandra saiu e sugeriu ajuda, tendo convidado os homens a acompanha-la. Resultou e seguimos viagem. Sempre que o chapa parava, era necessário empurra-lo para que voltasse a arrancar. Foi constante o discorrer de perguntas, as tentativas de perceber quem éramos, o que fazíamos em Moçambique. Entre a alegria dos bêbedos, o sofrimento das mulheres, o esforço pelo equilíbrio de todos para não cairmos, as dores em todos os músculos, as pancadas causadas pela turbulência da estrada, as crianças pareciam ser as únicas que não se deixavam vencer pelos solavancos que os buracos e lombas da estrada irregular causavam, nem pela mistura de cheiros ou pelo calor da planície. Envolvidos em poeira cada vez que nos cruzávamos com um camião pelo caminho, de tal modo que deixávamos de nos ver uns aos outros. Pouco a pouco, a hostilidade começou a dar lugar a confiança, e a cada pergunta lá se iam baixando, lentamente, as barreiras da incompreensão, e falando cada vez mais em português. Foram muitas as peripécias da nossa inesquecível viagem, longas horas sem comer e sem dormir, entre as quais se contam novas avarias, paragens pela polícia, e multas. Estivemos parados no meio de nenhures, sem rede ou forma de comunicação, avistou-se uma quase certa noite ao relento, apenas evitada pela perícia em mecânica dos locais. Tudo o que acontecia ja nos parecia tão natural como se ali pertencêssemos desde sempre. Em compensação, a paisagem deslumbrava-nos. O anoitecer era apaixonante, as montanhas desenhavam-se ao aproximar de Milange. As fogueiras deixavam-nos vislumbrar sombras de gente em redor das casas, plantadas aqui e acolá entre a vegetação. Já noite cerrada, chegamos a casa dos Irmãos Franciscanos Capuchinhos. Fomos largados, sem ter a certeza se estávamos no local certo, junto a um portão que agora vemos do lado oposto, pela janela do que ja chamamos de casa.
Alexandra e Pedro