Abri uma pequena arca. Esta arca, está dividida em dois compartimentos, um cheio e outro vazio. No que está cheio, encontrei um album de fotografias demasiado recente para ter pó… no vazio, encontrei espaço para mais um sem número de experiências e aprendizagens…
Foi assim que me senti ao chegar novamente a Quelimane. De regresso a uma casa que sempre tomei como minha, apesar dos inúmeros cantos que desconheço e a que não tive ainda acesso. Quase um labirinto, em que andamos para trás e para frente, na busca de uma saída. Aos poucos, vamos reconhecendo os caminhos já trilhados…
Carrego o album de fotografias diariamente. Ele é necessário em cada rua, em cada esquina, com qualquer pessoa. É impossível recomeçar sem ter em conta o passado. Na cidade, encontro velhos e novos amigos, partilhamos histórias e estórias passadas em comum… e consciencializo-me, cada vez mais, da importância “do outro”, quer na nossa vida, quer no nosso projecto comum: mais e melhor humanidade!


Esta é a minha quinta presença em missões de voluntariado em Moçambique, concretamente em Quelimane, e a primeira com a ataca. É curioso perceber, que não foi difícil para os habitantes de Quelimane entenderem a minha progressão pessoal em termos de participação e criação de novos projectos, quase como se fosse algo de perfeitamente natural e ao mesmo tempo obrigatório.
A ataca é já reconhecida como elemento activo e participativo na sociedade civil urbana de Quelimane. Nos bairros periféricos, à excepção do Bairro do Aeroporto onde estamos sediados, este reconhecimento é quase inexistente. Estamos a dar os segundos passos, depois dos primeiros dados pelo Bárbara (a nossa primeira voluntária). Não é um trabalho fácil…
Nenhum progresso se consegue realizar no desenvolvimento de qualquer comunidade sem a criação de uma relação de proximidade, onde a confiança, a transparência, o respeito, a dignidade, a compreenção e a tolerância sejam valores inquestionáveis. É isto que pretendemos transmitir às famílias que nos recebem e que estamos a apoiar.
No entanto, esta transmissão não consegue ser imediata por diversos motivos:
– desconfianca das familias relativamente ao motivo que nos leva a ajudá-los;
– receio que nos “intrometamos” na sua vida e que os forcemos a tomar decisões que não querem;
– códigos de comunicação diferentes;
– receio das familias de contar toda a verdade, seja por vergonha da sua condição ou por recearem ser censurados;
– experiências de vida e perspectivas muito diferentes das nossas (europeias);
Ao longo dos primeiros dias da semana, tivemos o prazer de observar o sucesso que está a ser o PTàD no que diz respeito aos externos2.

Nos últimos dias, o reverso da medalha… os primeiros casos de insucesso. Chamo-lhe insucesso pois não conseguimos que algumas famílias fossem transparentes connosco. Num dos casos, aquele que para mim foi o mais “curioso”, um jovem de vinte e poucos anos contou sucessivas mentiras para justificar o seu não cumprimento do acordo verbal que tínhamos: a construção de uma latrina. Primeiro por falta de espaço, depois pela necessidade de comprar chapas para cobrir o telhado (que por testemunhos e fotografias sabíamos já exisitirem antes do nosso apoio), acabamos por perceber que não a tinham construído por falta de autorização da vizinha. Pode parecer estranho, mas em comunidades em que o vizinho é quase família, a explicação pareceu-nos plausível. Depois de uns quilómetros de caminhada para encontrar a vizinha, que trabalhava na sua machamba (horta), percebi que o problema era o cheiro que as latrinas deixam ficar. Uma curta negociação, permitirá construir uma latrina com respirador, em que a higiene da família seja assegurada sem o inconveniente dos maus cheiros para os vizinhos. Apesar de a solução ser simples, tudo em Moçambique leva o seu tempo. E temos que perceber que a malha social é substancialmente diferente da nossa, sobretudo nos bairros exteriores das cidades.
Sem perceber as diferenças culturais que nos separam, e a consequente aprendizagem, jamais o nosso trabalho será produtivo e levado a bom porto.
Por outro lado, percebi que este trabalho tem que ter um acompanhamento constante. Este acompanhamento permitirá a criação de laços de confiança e amizade, fundamentais para quem nos vê ainda como “um corpo estranho”, e que nos permitirá, a nós ataca, ser uma força activa no combate à pobreza absoluta, estado em que muitas destas famílias vive.
Com urgência, ao ritmo moçambicano… um passo de cada vez…

Tiago Ribeiro

3 Responses to Um passo de cada vez…
  1. O Sr. Tiago está como um peixe na água, e a Rita, pelo pouco que conheço desse povo e país, irá pelo mesmo caminho : ). É bom ler sobre o vosso trabalho, o dia-a-dia, ver o entusiasmo pelo projecto e os frutos que está a dar.
    Através do blog, todos temos uma melhor percepção do que se passa no terreno, por isso e na minha opinião, só revela que a ataca é exactamente aquilo que eu julgava que fosse. Preciso dizer mais alguma coisa ; ) ?!
    Parabéns pelo trabalho!

    Beijinhos Rita e Tiago

    Márcia

  2. Este comentário foi removido pelo autor.

  3. É com emoção que leio e releio frenéticamente os vossos testemunhos, bebo as palavras e me entusiasmo com as vossas experiências.
    Transporto-me para junto de vós, experimento as sensações, o calor humano, os cheiros, os sabores… As dificuldades e o cansaço também!
    Continuem o bom trabalho e mandem notícias, sempre!
    Boa viagem para o Tiago e a Raquel que se vão juntar a vós.
    Um bjo para todas as elas, um abraço para todos os eles! Sentidos! Para Quelimane e para Maputo.
    Fernando


[top]

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *